quinta-feira, dezembro 16, 2004

Peçuelos Entesourados


O Sonho do Carreteiro
Luiz Menezes
Carreteou anos a fio.Conhecia palmo a palmoas estradas da querência;Sabia onde dava passo- no tempo das enxurradas -aquele arroio sotretacemitério de carretadisfarçado em água mansaVira nascer muitos ranchosnesse corredor sem fim.Sabia que na picadalogo depois do lagoão,o umbu do enforcadodera lenda prás estóriasdos bolichos, das ramadas.Sabia bem todo o causoda tapera do repecho:A maula traíra o guascae este sem dó nem piedade,cortara junta por juntao belo corpo morenodaquela indiazinha loucaque se engraçara num piá ...Mas além, no Passo-feiovira morrer um tal Juca.Eram três contra o rapaz.E como morrerra lindoaquele guasca sem medo ...A estória ficou em segredopois diz que o tal de mandanteera mui relacionado,e até contraparentede um graudaço do povo.Conhecia palmo a palmoas estradas da querência,sempre fora carreteiro.Envelhecera na lidasem conhecer outra vidasem ter outra ocupação.Tinha por seu ganha-pãoa velha carreta amigacompanheira de cantigadaquele piazinho vivoque era, alegria e motivode seu final de existência.Pois ficaram bem solitosmais amigos do que antesdes?que a finada se fora ...Por isso sempre de noitea meia luz do candieiroficava horas inteirasmostrando prá seu piazinhoas letras do ABC.E o piá com muita memóriadecorava uma por umaas letras que galopeava,ou por outra, engarupavanas palavras do jornal.Como era esperto o guri:Foi duas, três paletadasjá sabia mais que o pai ...E foi numa dessas noitesque o velho e bom carreteiroteve um sonho de repente.E quasi num gesto loucogritou prás quatro paredesenfumaçadas do rancho:Meu filho há de ser doutor!Não há de ser carreteiro,pois estas mãos calejadasdo peso-bruto, da enxada,hão de sangrar no trabalhoprá que este piazinho feioviva melhor do que eu ...Pura e santa ingenuidade!O arroio-sociedadeprá o pobre nunca dá vau!!No outro dia cedinhoenveredou para o povo ...Voltava a velha carretaA resmungar nas estradasna viajada da esperançacarregadinha de sonhos.E o pobre e bom carreteiroia falando de tudocom seu piazinho faceirodentro da bombacha nova.Não esquecia de nadanos seus conselhos de pai:Se lá no povo à tardinhao piá sentisse saudade,bombeasse prá o horizonte,que alguém solito decertomeio tristonho é verdade,mateando assim com saudadeestaria a lhe esperar ...Que importa se demorasse,pois nunca ouvira dizerque a tal saudade matasse.Mas nesse dia por certoQuando voltasse doutortudo havia de mudar.Até o céu com certezamorada das almas purasouviria com ternurauma indiazinha chorar.E as estradas da querênciaque conhecia demais,lhe viram passar felizcom novo brilho no olhar.Mas lá no povo - cuê-puxa! -Bateu em todas as portasclamou por todos os santosrecorreu todos os amigos- muitos dos quais ajudara -andou quase mendigando,Prá dar escola pra o filhomas ninguém quis lhe escutar... E a esperança foi mermandofoi mermando ... e se apagou.Botou a carreta na estradao Piazinho dentro delatocou de volta outra vez.A noite então já chegara.Naquela enrugada carade gigante das estradasuma lágrima teimosaveio molhar-lhe o nariz ...Olhou o filho com carinho,mas com muito mais carinhoCom mais amor do que antese uma queixa derramou:Quem nasce lutando buscaa morte por liberdade!Mentira! A tal de igualdadenão existe por aqui... Que adianta se amar aos outrosse os outros não dão amor?Pega a picana, piazinhoe acorda esse boi manheiro,pois filho de carreteironunca pode ser doutor!!

Porto Alegre, minguante de dezembro.

Nenhum comentário: